"Usava um corno de vaca como amuleto"
Portugal sempre foi um país com grande tradição nas balizas. Há já longos anos que não é por falta de guarda-redes, de qualidade inegável, que o futebol português não tem ido mais além nas competições internacionais. Um dos primeiros nomes que nos vem à cabeça, quando falamos de grandes senhores da baliza, é seguramente o de Manuel Bento. Não é por acaso que lhe chamavam o Yashin da Golegã.
Bento marcou uma geração e ainda continua a servir de referência para muito miúdos e graúdos. Ainda petiz, deu nas vistas no Barreirense. Esteve à experiência em Alvalade, mas lá disseram-lhe que era muito baixo. Pouco tempo depois, rumou ao outro lado da segunda circular, onde permaneceu até ao fim da sua carreira.
Diário do Barreiro - Quem é Manuel Galrinho Bento?
Manuel Bento - É um ex-jogador de futebol, que agora é treinador de guarda-redes do Benfica. Enquanto jogador, tentei sempre fazer uma carreira bonita, sempre com muito trabalho e, subindo a "corda a pulso", consegui chegar onde cheguei, dignificando sempre os clubes por onde passei (Barreirense e Benfica).
DB - Como surgiu o futebol na sua vida?
MB - Surgiu como surge a tantos miúdos. Há 40 anos atrás, não havia as condições de hoje e o nosso campo de futebol era a rua. Como era baixinho, era sempre "empurrado" para as balizas. Depois, fui-lhe tomando o gosto até chegar ao mais alto nível.
DB - Quem foi ou quem foram as pessoas mais influentes da sua carreira?
MB - Quando estava a dar os primeiros passos no futebol, foi o Sr. Sobral que mais me ajudou no início da minha carreira. Por duas ou três vezes levou-me a Alvalade, onde acabei por não ficar, sendo que depois ele propôs-me ir treinar para o Barreirense.
DB - A lesão contraída no México 86 poderá ser considerada como o princípio do fim da sua carreira?
MB - Creio que sim. Embora estivesse com 38 anos, ainda me considerava no auge da minha carreira, pelo tenho a convicção de que aguentaria mais três ou quatro anos a jogar profissionalmente.
DB - Falando em México, o que é que realmente se passou em Saltillo?
MB - Não é fácil, ao fim de todos estes anos, falar do que se passou nesse Campeonato do Mundo. As pessoas que nessa altura tiveram as mesma responsabilidades que os jogadores ainda não se pronunciaram sobre o que se passou, pelo não me compete a mim falar sobre esse assunto. Mas, as coisas começaram a correr mal antes de chegarmos a Saltillo. Os problemas já vinham do Campeonato da Europa de 84 e agravaram-se até 86. Um dia, quando quem de direito quiser explicar aos portugueses o que se passou, estarei disposto a colaborar. Já fui muito prejudicado, durante e depois do México, por falar no caso Saltillo. Quando Humberto Coelho era seleccionador nacional, fui convidado para ser o treinador de guarda-redes da Selecção e fui um dia a um canal de televisão, onde também me perguntaram sobre esse caso. Apenas disse que faria tudo igual se fosse hoje. O certo é que, no outro dia, disseram-me que já não iria ser treinador da Selecção.
DB - Sonhou alguma vez jogar no estrangeiro?
MB - É evidente que sim. Tive várias oportunidades para o fazer, mas há uns anos atrás o futebol não era como o de hoje. Agora há empresários e toda uma máquina de protecção ao jogador, que antigamente não havia. Infelizmente, nós estávamos em poder da direcção, que nunca abriu mão de mim. O Bétis de Sevilha, o Clube de Brugge e o Anderlecht chegaram a fazer propostas junto dos dirigentes do Benfica, mas sempre fui dado como inegociável.
DB - Quem foi o jogador com quem mais rivalizou nos relvados?
MB - Eu vi sempre no outro guarda-redes um adversário, mas existiu um com quem sempre tive uma rivalidade, mas uma rivalidade saudável, que foi o Vítor Damas. Ele foi o guarda-redes que mais me obrigou a trabalhar.
DB - O que é que se passou com o Manuel Fernandes, num célebre jogo Sporting-Benfica?
MB - Foi apenas uma cena caricata, das muitas que acontecem no futebol. Antes do jogo frente ao Sporting, tinha sido saturado com 36 pontos e, numa bola disputada em que fui aos pés do Manuel, ele roçou com os pitons da bota na minha cabeça. Levantei-me normalmente e encostei o cotovelo na cara dele, que fez o seu papel atirando-se para o chão.
DB - Esse lance afectou a vossa amizade?
MB - Obviamente que não. No dia a seguir ao jogo, fomos almoçar juntos e sanámos tudo o que se havia passado.
DB - Terá sido o facto de pôr a cabeça onde os outro punham os pés que fizeram de si o grande e singular guarda-redes que foi?
MB - Talvez. Eu era muito corajoso e destemido. Qualquer guarda-redes que queira mesmo ter esta função tem que ter um pouco de louco. A loucura faz parte do futebol e o guarda-redes tem de a ter.
DB - Onde é que ia buscar a força necessária para chegar onde poucos chegaram?
MB – Ia buscar muita dessa força à família e ao gosto que tinha em jogar futebol, ou seja, o amor à camisola.
DB – Mas, na altura, falava-se muito de um amuleto que levava sempre consigo para os jogos. Que amuleto era esse?
MB – Todo o ser humano é supersticioso e eu não fujo à regra. Tinha uma peça, que as pessoas pensavam estar dentro das luvas com que jogava. Isso era mentira. De facto, eu usava o amuleto nas luvas, mas nas suplentes que ficavam dentro da baliza. Esse talismã era nada mais nada menos que o corno esquerdo de uma vaca. Depois, esse amuleto foi dado a outra pessoa, que também já acabou a sua carreira, o Neno.
DB – Até onde pensa chegar como técnico?
MB – Comecei como treinador de guarda-redes da equipa principal do Benfica, onde permaneci durante três anos. Depois de algum tempo afastado, tentei fazer a minha carreira como treinador principal, no Leça, União de Coimbra e Amora. Há dois anos e meio, regressei ao Benfica, onde incorporei a equipa B do clube, assumindo novamente a função de técnico dos guarda-redes. Agora quero fazer formação, para que deixem de existir guardiões estrangeiros de má qualidade no meu clube.
DB – Pensa que o Moreira tem todas as condições para singrar no Benfica?
MB – O Moreira ainda tem muito que aprender e muito que crescer. Reconheço que tem qualidades, mas tem que trabalhar muito para que possa progredir e chegar ao topo.
DB – Falando na Selecção Nacional, acha que o Vítor Baía deveria ser chamado para as convocatórias da equipa portuguesa?
MB – Nesta situação estou como o Scolari sobre os jogadores não convocados. Não falo, para não ser mal interpretado.
DB – O Euro-2004 vai ser o maior evento desportivo alguma vez realizado em Portugal. Até que ponto será benéfico a realização deste certame no nosso país?
MB – Estou bastante optimista em relação ao Europeu. É algo que nos vai sair caro (contribuintes), mas se outros países conseguem fazer eventos desta natureza, nós também conseguimos. Foram criadas condições que não haviam no nosso país e as pessoas que as levaram a cabo são as que realmente gostam e querem que o nosso futebol evolua. Mas, se o Euro-2004 não for o arranque para a afirmação do futebol português, então nunca sairemos do lugar onde estamos.
DB – Em relação ao dinheiro gasto nos estádios, pensa que foi bem aplicado ou deveria ter sido gerido de forma diferente?
MB – Os novos estádio tinham que ser feitos. Não tínhamos condições para realizar um Europeu de futebol com os palcos que possuíamos. Penso que foram estádio a mais, mas se assim o entenderam, assim será.
DB – Que mensagem gostaria de deixar aos leitores?
MB – Apenas queria dizer às pessoas que acreditem no futebol. Gostaria que não voltasse a acontecer o que aconteceu no Portugal-Grécia, quando apuparam os nossos jogadores. Não se pode querer que a nossa Selecção seja, de um momento para o outro, campeã da Europa. Há que dar tempo para que o trabalho seja desenvolvido nesse sentido. Apoiem o nosso futebol e os artistas, porque só assim chegaremos ao patamar mais alto do desporto-rei. Temos que estar todos de mãos dadas.
Entrevista realizada para o Diário do Barreiro em Dezembro de 2003
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